Jaime de Jesus Alexandre, 71 anos, e Jaime Esperança Alexandre, 43 anos, ambos naturais dos Barreiros, pai e filho, são conhecidos como os “Jaimes da Funerária”. Primeiro apenas o pai, agora acompanhado pelo filho, a família dirige há quase 40 anos a empresa com quem ninguém deseja fazer negócio: a Funerária Jaime. Duas gerações marcadas pelas semelhanças (ambos partilham a face da empresa, ambos ocuparam a presidência da Associação de Agentes Funerários do Centro) mas também pela mudanças de mentalidades das últimas décadas.
Como se começa uma “funerária”?
JJA – Fundei a agência em 1978. Eu estava a trabalhar na Alemanha a trabalhar como estucador, e soube de uma senhora que estava a vender um alvará para uma agência funerária. Depois de conversar com esta e aquela pessoa, resolvi comprá-lo, voltar para Portugal e fundar a agência. Fomos crescendo e neste momento temos 3 filiais (para além dos Barreiros, ainda estão presentes em Leiria, Juncal e Porto de Mós).
Não é de todo um trabalho fácil.
JJA – No princípio foi difícil, pois não estava habituado, mas fomos sempre nos aperfeiçoando, sempre seguindo. O nosso trabalho tem de ser feito de repente, um cliente telefona e, ou tem de ser logo, ou daqui a poucas horas. Trabalhamos ao sábado, ao domingo, feriado, de noite, de dia, deixamos tudo para tratar das coisas como o cliente quer.
A visão das pessoas do vosso trabalho também não ajuda…
JJA – Algumas acham que só queremos ganhar dinheiro, chamam-nos de cangalheiros, enterra-mortos.. O pensamento da maioria foge muito à nossa realidade, quase sempre para o lado negativo. Poucas pessoas conseguem perceber quão difíceis podem ser certos serviços. Existe uma escala na Polícia para as várias agências funerárias, e quem estiver de serviço tem de fazer o transporte dos corpos para o hospital ou para a morgue, onde quer que ele esteja e por muito difícil que seja o acesso, e independentemente do estado do corpo.
Sabendo como as pessoas viam a vossa empresa, como (e quando) é que o filho começa a ajudar?
JJA – Ele já me ajudava, e depois começou a dedicar-se a tempo inteiro, e resolveu ir fazer as formações necessárias todas que exigiam na altura.
JEA – Em 1978, quando começou o serviço da funerária era basicamente transportar o corpo do hospital para casa da pessoa, onde era feito o velório, e depois para o cemitério.
JJA – E quase ninguém morria no hospital, era tudo em casa… Quando eu comecei, os corpos eram velados em casa, e aí ficavam até à hora do funeral…
JEA – Hoje em dia tem-se um cuidado com o corpo, não é que antes não se tivesse, só que não havia formação disponível. Hoje não só isso é exigido como eu faço questão de a ter. Na última década tive mais de 3 mil horas de formação. Hoje desde as técnicas de tratamento de corpo, à vertente mais burocrática e administrativa da empresa, fotografia, tanoestética, tanatopraxia, à personalização dos caixões. Depois temos o ritual das exéquias, com a contratação de um grupo coral, a realização de um vídeo biográfico, a colocação de uma mesa onde se coloca o livro das condolências, e o próprio embelezamento da capela mortuária. Para além disso, tratamos de todo o processo no Registo Civil e na Segurança Social, e actualmente também acompanhamos a família na ida às Finanças para tratarem da relação de bens e habilitação de herdeiros. Atenção que não o podemos fazer pelas famílias, mas podemos acompanhá-las nestes processos que são morosos e que muitas vezes nunca tiveram de passar por eles. Tudo para que a família não se preocupe com mais nada, se não com viverem o seu luto.
Fazem tudo em função dos clientes e da dor que estão a sentir.
JJA – O serviço muda de cliente para cliente, é sempre muito complicado quando é a primeira vez que lhe falece alguém na família. Todo o serviço tem de ser feito com muita atenção, ser sensível à dor da família, é preciso dar-lhes tempo. Os percurso feitos no carro funerário até ao cemitério variam consoante a família. Alguns vão em silêncio, outros pedem música, ou gravações a rezar o terço. Há pouco tempo, o meu filho teve de ir levar um corpo ao Algarve e foi logo a esposa do falecido que pediu para colocar música. Algumas famílias são muito fechadas, outras não conseguem estar muito tempo sem dizer nada. Temos de ir à velocidade que eles querem. Nós vamos seguindo conforme as pessoas, estamos lá, mas não estamos.
Houve mudanças nas pessoas na maneira como lidam com esta ocasião?
JJA – Muito, muito. Na altura que comecei, era raro ser um familiar directo a ir tratar de um funeral, era geralmente um tio ou um primo, até um vizinho. A família ficava em casa a velar o corpo (onde a maioria das pessoas faleciam). O morto ficava geralmente na cama, apenas ia para a urna uma horita antes do funeral. Hoje vai sempre um familiar directo, as pessoas têm uma maneira diferente de pensar. As viúvas vestiam de preto para o resto da vida, hoje isso já não acontece. Depois do funeral, era muito normal as pessoas não voltarem ao cemitério durante anos, distanciavam-se, até deixavam de saber onde era a cova. Havia muitas confrarias, que acompanhavam os funerais com 20, 30 homens, todos de capa, e hoje está tudo a acabar, aqui no centro já não há nada disso.
E a nível técnico do vosso trabalho?
JEA – Até 2003 não houve grande mudança, mas daí para a frente começamos a ter muitas formações. Hoje para abrir uma agência funerária é preciso ter um técnico que seja responsável pela agência, que já tenha tido imensas horas de formação. E todos os anos é preciso fazer novas formações.
JJA – É muito difícil começar uma agência funerária agora. Quando eu comecei bastava ter um carro e mai’ nada, agora é preciso ter escritório, ter armações, dois carros (um de apoio), pessoal qualificado. É tudo bastante caro. Depois é o perfil que o delegado técnico tem de ter, que não é para todos. (No caso da Funerária Jaime o Delegado Técnico é Jaime Esperança Alexandre.)
Os carros também não podem ser uns quaisquer.
JJA – Hoje em dia um carro funerário custa para cima de 60 mil euros. Os acessórios para as exéquias também aumentaram em número e preço (os castiçais, o livro de condolências, as alcatifas). Quando comecei (em 1978), eu fui o 2º carro funerário da cidade.
Imagino que esse preço seja também reflexo da quantidade de serviço que é suposto o carro suportar. Quantos funerais fazem por ano?
JEA – Existe variações bastante grandes de ano para ano, mas em média são 150 funerais por ano. Quando se começa faz-se muito menos, é um negócio que demora muito tempo a crescer e consolidar, mas se fizermos uma média de 8 funerais por mês, o número total desde o início da nossa actividade deve estar acima dos de 3 mil.
Por vezes as deslocações também são mais longínquas…
JEA – Comecei exactamente uma vez que tive de ir levar um corpo ao País Basco e o meu pai não podia. Agora a maioria dos óbitos que ocorrem no estrangeiro tratamos as coisas através de intermediários que temos lá. Enviamos a documentação para o local, esses intermediários tratam das coisas lá, enviam o corpo, e cá somos nós a tratar de tudo.
Também existem alturas onde têm mais trabalho que outras.
JEA – As pessoas costumam associar os funerais ao nascer e à queda da folha, mas na realidade o que faz impacto é a mudança de temperatura. Existe uma queda brusca de temperatura, aparecem as primeiras geadas, e quem está num estado debilitado facilmente apanha uma pneumonia, e infelizmente acaba por falecer.
Sendo uma freguesia bastante religiosa, ambos terão também crescido com uma educação católica, mas os vossos clientes nem sempre professam a mesma religião. É fácil lidar com esses casos?
JJA – É, temos de nos propor ao trabalho que estamos a fazer e com quem estamos a lidar. Nós fazemos funerais a todas as religiões e seguimos a maneira de cada uma (e o que o cliente quer). Sempre fomos assim. As diferenças não são muitas, é preciso prestar atenção aos pormenores (se estão ou não presentes cruzes, etc.), quem oficia as cerimónias, se é um padre, um pastor...
Cada funeral é um funeral então. Podem–nos contar quais foram alguns pedidos invulgares que tenham tido?
JJA – Alguns querem ir com a bandeira do Benfica ou do Sporting, uma garrafa de cerveja ou um maço de tabaco. Já aconteceu levarem instrumentos de trabalho. Um senhor foi com o saxofone. Alguns querem caixões mais claros, outros mais escuros. Já tivemos de mandar pintar um caixão todo de preto. Também já tivemos um caso em que não queriam nenhum forro por dentro, apenas a madeira, mas nunca soubemos o motivo.
Estando constantemente rodeados de “morte”, torna-se mais fácil lidar com a perda de um parente?
JJA – Isso é mais difícil. Às vezes é quase de repente, e pode ser um choque e nem dá quase para pensar. Mas se tivermos alguém que esteve doente muito tempo… acabamos por nos afeiçoar mais, o choque é grande à mesma. O funeral é sempre feito por outra agência, um colega nosso que se ofereça. É uma cortesia entre profissionais.
No vosso caso, o cliente são sempre as famílias, excepto quando as pessoas pagam o seu próprio funeral. Já tiveram casos desses?
JJA – Já tive (e ainda tenho alguns clientes assim), e foi exactamente como eles pediram. Deixam tudo pago e as indicações, e algum familiar confirma que é tudo cumprido à risca. Agora estão a começar a aparecer mais clientes a deixar indicações que preferem ser cremados, para a família depois saber.
Não leve a mal, mas e o Sr. Jaime (o pai) já tem o seu funeral pago?
JJA – Alguém há de pagar, ainda não está nada decidido. O funeral é para ser tratado depois de morto (risos).