A invasão
Setenta e duas primaveras, já me fazem arrastar os pés. Cambaleio de um lado para outro, aqui caio, ali me levanto, com muito custo.
Lá me arrastei até à Rua do Campo. Ao longe avistei o cemitério onde jazem os corpos de tantos e tantos que conheci e de tantos a quem disse bom dia, boa tarde ou boa noite, e cujos já estão em decomposição.
De repente, certifico-me que estou dentro de outro cemitério, onde os troncos das árvores são outros cadáveres a contorcerem-se de dor. Congelasse-me o sangue nas veias, a língua atravessa-me na garganta, fico pálido, o suor saísse-me pelos poros da pele, grito por oxigénio, a minha respiração vai enfraquecendo, tento gritar mais alto, mas já não consigo.
As árvores que me haviam de fornecer o oxigénio ou a qualquer transeunte tinham sido derrubadas por lenhadores coniventes com o crime. Sem forças agarro-me a um tronco centenário de pinho-bravo já em fase de respiração de morte.
Segredamos tantas coisas. Começou a falar-me das gerações passadas, dos pais, dos avós e outras mais, do que nunca foram meninos.
Irrompi em pranto, não me consegui conter, porque um homem quanto ama também chora, e choro refrigera a alma.
Falou-me do respeito que havia pelo pinho-bravo, o valor que tinha na extração de resina, o valor que tinha pela sua madeira compacta, qualidade existente em mais nenhuma parte do mundo. Falou-me ainda que funcionava como reserva monetária.
Tudo isto eu ouvi apaixonadamente. Até que lhe respondi:
– Esta situação está a fazer-me com que do teu tronco saiam as tábuas do meu caixão.
Passa um transeunte e vê-me naquele estado de perturbação e interroga-me: O que se passa?
Respondi-lhe:
– Não aguento mais ver um cemitério de cada lado da estrada. Retorquiu-me, são leis. É por causa dos fogos e para eu ter calma.
Mas o meu ego não aceita um crime ambiental desta natureza. Se cá estou há 72 anos tenho a responsabilidade de denunciar o que está mal.
– É por causa dos fogos!
– Mas isto evita algum fogo? Antes pelo contrário o proporciona. As massas de ar de diferentes temperaturas cruzam-se nessas clareiras, chocam-se umas com as outras, o que dá direito a tufões, aumentando a intensidade do incêndio.
– São leis!
– São leis feitas por betinhos que entraram na política por compadrio, nunca entenderam nada da floresta, nunca pisaram os tojos que nela crescem, nunca partiram as cabeças dos dedos dos pés em terreno pedregoso ou nas raízes das árvores.
– São leis!
– São leis feitas por betinhos que nunca deviam entrar na prática sem serem aperfeiçoadas por gente que sabe da matéria.
Esta perfeição consiste: em limpeza numa maior dimensão possível, no derramo das árvores, um desbaste na faixa lateral de 10 metros ou mais, mas que nunca se ultrapassa os cinco a seis metros entre troncos das árvores para não tirar o estímulo ao proprietário.
O corte devia existir a varrer no máximo em 2 metros além da valeta, mas para todas as árvores.
A minha dor não fica por aqui. Da Rua do Campo desço pela travessa desta rua em direção ao Bico do Brejo. Do Bico do Brejo em direção à estrada do Casal Novo. Da estrada do Casal Novo em direção ao Parque de Merendas, onde existem apenas estradas agrícolas, e vejo o mesmo cenário de morte. A terra que me viu nascer já não tem oxigénio para respirarmos.
Com tudo isto o meu sangue secou e o meu corpo esta transformado num cadáver.
Tenho de pedir responsabilidades a quem me causou este dano.
Dirijo-me à Junta de Freguesia de amor. Dizem-me que é com a Câmara de Leiria. Dirijo-me à Câmara – Gabinete Técnico Florestal – dizem-me que é com a Junta de Freguesia, que foram dadas competências à Junta de Freguesia de Amor para resolver este assunto e contratar as pessoas necessárias para fazer este serviço.
Temos assim, aqui a Caixa de Pandora.
O homem e a mulher não se entendem e batem no burro, ninguém se assume.
Quando temos gente nos cargos sem parentes para desempenhar esses cargos, o povo é que paga.
Então dá-se a invasão.
Invadem-se os terrenos privados sem dar cavaco aos proprietários. Hediondo crime de falta de respeito pelo próximo. Hediondo crime de usurpação do que esta nos terrenos a qualquer preço.
Com o peso de setenta e duas primaveras em cima nunca imaginei ver esta verdadeira invasão.
Quem cala consente, e quem não se sente não é filho de boa gente.
As gerações futuras não nos irão perdoar o mundo de cacos que lhe estamos a deixar. Neste caso sem árvores e sem oxigénio.
Não lhes faltará vontade de irem aos cemitérios e arrancarem de lá as nossas cinzas e espalha-las por cima dos espinhos que lhes estamos a deixar.
Joaquim Pedro