Início Covid-19 Covid-19. Amorense infetado, combate a doença há um mês

Covid-19. Amorense infetado, combate a doença há um mês

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A entrevista decorreu numa varanda, isolada do resto da casa e à distância de três metros do entrevistador. É naquele espaço que aproveita o único momento de liberdade do seu dia.
Evitam-se nomes, para não ser possível ao leitor identificá-lo. Chamemos-lhe de “Paciente 1”. O primeiro caso conhecido pelo nosso jornal na Freguesia de Amor.
A sua descoberta não foi fácil. Há muito que corria o rumor de uma família que estava infetada. Cada versão da história diferia na origem do casal, no número de elementos da família.
Só recentemente conseguimos descobrir quem era, e separar rumor da verdade.
Ao contrário do que se dizia, a família não está toda infetada. Apenas o “Paciente 1” tem o novo coronavírus, estando os restantes elementos saudáveis.
Passam agora cinco semanas desde que recebeu o resultado do primeiro teste a confirmar que tinha Covid-19. De lá para cá, já foi testado mais três vezes, sempre com o mesmo desfecho: continua infetado, e se saísse à rua, infetaria. Por isso, está desde esse dia isolado, fechado num quarto. Com 35 anos, e sendo trabalhador por conta própria, assumiu o risco de contar o que tem passado ao nosso jornal.

Sabe onde e de quem apanhou o coronavírus?

Sei perfeitamente. No final de março fiz um trabalho com um colega meu na Figueira da Foz. Acabámos o trabalho, os restaurantes já estavam fechados, então fomos almoçar a casa dele. Eu, ele e a mulher dele. Eles estavam infetados, e que não sabiam que estavam. Não fazem ideia onde ou quando apanharam. Não tinham sintomas, com a exceção da esposa desse meu colega que estava com uma pequena tosse já há algum tempo. Ela terá ido ao médico, foi fazer o teste. Dois dias depois de estarmos juntos, ele ligou-me a dizer que o teste da esposa tinha dado positivo.

O que é que fez nesse momento?

Resolvi mexer-me para marcar um teste para mim. Liguei para o número da Saúde 24, e expus a minha situação. Frisei que não queria fazer no hospital, e se poderia ir fazer ao posto avançado de Covid (instalado no estádio municipal). Aceitaram. Recebi uma mensagem com um código e uma marcação, que depois mostramos lá.

Como decorreu o teste?

Estão lá reunidas condições que é impossível qualquer pessoa que vá lá fazer o teste e que não esteja infetada, sair de lá infetado, por muito medo que tenha. Não temos contacto com ninguém, nem com nada. Uma pessoa vai no seu carro, com tudo fechado. A nossa identificação não passa pelas mãos de ninguém, é verificada através do vidro do carro.

Medem a temperatura, fazem algumas perguntas e realizam a recolha com a zaragatoa. Esta última parte é assim tão desconfortável como dizem?

Muito, mesmo. Só não dizemos asneiras porque parece mal. Faz uma pessoa chorar, vai mesmo fundo, parece que toca lá atrás no cérebro. E cada vez que se repete parece que fica pior. Ou são as dores, ou a vontade de vomitar. Não desejo a ninguém ter de passar por isso.

O que aconteceu depois?

Isolei-me logo. Temos um escritório, mudei a cama do meu filho para lá, ele mudou-se para o meu quarto com a minha esposa. E fiquei naquele quarto sozinho.
Recebi o primeiro resultado no dia 3 de abril, dois dias depois de ter feito o teste. Era positivo, tinha o coronavírus.
Na primeira instância, contactaram-me por telefone, para me informarem do resultado. Disseram-me para eu estar isolado, visto não ter nenhum sintoma, não precisava de tomar nenhum medicamento. Nem para febre, nem dores. Se aparecesse algum sintoma – falta de ar, febre ou dores no corpo – teria de ligar logo. Mas não se manifestou nada até hoje… quer dizer, a única coisa que tive depois disso foi estar dois dias com 37,5 °C, mas apenas consideravam febre a partir dos 38 °C.

E chamaram mais alguém para ser testado? A sua esposa ou filho?

Não, eu é que exigi que pelo menos a minha esposa fizesse. Deu negativo. Eu tive a sorte de saber antecipadamente que poderia estar infetado. Ainda estava no período de incubação (tinha o vírus, mas ainda não o estava a transmitir), quando me isolei.

O seu filho não foi testado?

O menino não foi preciso fazer, porque os médicos consideraram que se ela não tinha apanhado – e ele que está sempre com ela – também não teria. Mesmo assim, é preciso saber que não ter sintomas, não quer dizer que não tenha o vírus. Até fazer o teste, ninguém pode dizer que não o tenha (ou teve) no corpo.

Deve ter sentido um alívio enorme quando receberam o resultado negativo do teste da sua esposa.

Sem dúvida. Sabia que não tinha trazido a doença para casa, que ela não tinha apanhado, que em princípio o meu filho também não teria. É uma responsabilidade acrescida, imagine que trazia, e para além deles, passava aos meus sogros [que moram perto]. Fazem parte de um grupo de risco, seria como lhes estar a passar uma certidão de óbito. Seria um peso enorme de viver. E nem poderia acompanhar a minha família, não teriam um funeral digno. Não se abrem caixões, nada! A morte é ainda mais solitária agora.

Passou a estar fechado num quarto, sozinho… é muito difícil?

É estar sempre na mesma divisão da casa. É estar ali fechado, ouvi-los pela porta, falar pelo telefone, fazer vídeo-chamadas.
À noite é demasiado difícil. Durante o dia ele anda por aqui, oiço-o, ele fala. Ele continua a ter de pedir-me autorização para ver vídeos ou para jogar na “Playstation”. Vai falando comigo pela porta, pergunta-me se pode ou não fazê-lo. Mas à noite… Quando se vai deitar, ele diz que quer estar com o pai. É aí que é mais difícil.
Não posso tocar na minha esposa. Sou um estranho na minha própria casa.

Como se mantêm a sanidade assim?

Não se consegue manter. Chega a altura em que é muito tempo ali. Durante o dia vamos nos entretendo com umas coisitas, mas durante noite, quando é para dormir… não se dorme. Está-se ali a pensar em tudo e mais alguma coisa. Uma pessoa já nem sabe em que dia está.
Eu consigo “praticar desporto” – tínhamos a passadeira naquele quarto, chego a “correr” 10 quilómetros por dia. Vejo filmes, estou no computador, é lá que passo tempo. Falamos por chamadas. De tempos a tempos, a esposa bate à porta e deixa-me ali as refeições. Chega a uma altura, já não se espera nada. Se estamos ali, só queremos estar ali, sozinhos. Se saímos, só queremos voltar. É o medo de contaminar, é a rotina da solidão…

Mas, no meio disto tudo, eu não tenho sintomas. Se para mim, que estou na minha casa, está a ser muito difícil, não consigo imaginar quem tem de estar num hospital, sem ver a família, sem estar na sua cama, no que é seu. Alguns em coma, para poderem estar ligados ao ventilador.

Tem acompanhado a evolução de outros doentes?

É impossível não procurar saber. Há pessoas que estão em casa, com falta de ar. E outros que nem em casa estão. Estão num hospital, deitados, ligados a um ventilador. E aquilo é tudo menos agradável.
E mesmo depois de se livrarem do ventilador, há outra etapa enorme para superarem depois disso. Há mazelas muito fortes. Tenho um conhecido com 68 anos, que é médico e esteve ligado à máquina. Recebeu um teste negativo, quarenta e oito horas depois, ao repetir, o teste voltou a dar positivo. E está assim há quase dois meses. Há pessoas que julgavam que eram saudáveis, e depois apanham e têm febres altas, falta de ar, que não podem estar em casa a recuperar. E as sequelas? O meu conhecido teve de voltar a aprender a andar, está a ter fisioterapia, terapia da fala. A massa muscular perde-se, 40 a 60%. Existem muitos problemas que advêm de estar tanto tempo assim. O período de reabilitação é muito demorado. Têm de fazer tratamentos a isto e aquilo só para voltar a ter qualidade de vida.

Fala com o seu filho à distância, através de uma porta. É preciso lutar para conseguir manter essa distância?

Até nas coisas simples é complicado. Com a escola em casa, às vezes há problemas com o “tablet” que o meu filho usa, ele fica nervoso, diz que não quer perder a aula… tenho mais conhecimentos de informáticos que a mãe, então ela lá vai à porta, tento ajudar à distância.
É lutar contra o nosso impulso. Quando é preciso alguma coisa, quero lá ir, e tenho de lutar com todas as minhas forças para não sair. Uma noite, parou-lhe a digestão, e só a mãe o pôde ajudar, eu não podia fazer nada. É complicado, explicar como me sinto. Foi o momento mais difícil, ele a precisar de ajuda, a minha esposa também, e eu ter de manter-me distante.

Está nisto há mais de um mês. Como está a aguentar a sua esposa?

Ela é muito forte, tem uma capacidade muito grande de absorção. E… tem sido uma mais-valia nesta situação. Ela não ter ficado infetada significa que não dependemos de mais ninguém… mesmo que tenhamos passado a depender totalmente dela. Assim continua a poder ir às compras, fazer o que é preciso para que não falte nada.

E como ficou o seu trabalho?

Parado. É bom que tenha um pezinho de meia para se aguentar, de outra forma, não vai ser fácil. Eu nem fiz as contas à percentagem que me cortaram, mas o que recebi foi um valor irrisório. Mas nesta altura, não posso estar preocupado com isso. Estou mais preocupado com os meus, e com a vontade de voltar a estar com eles. Depois logo se vê.

Acabou de passar o Dia da Mãe e não pode celebrar com a sua esposa…

Passou o Dia da Mãe, passou a Páscoa, o aniversário da esposa, em breve é o meu. Tem sido tudo sozinho, tudo à distância. Enquanto estiver positivo, vou ter de ficar ali mais um bocadito.

Como está a ser seguido? Pelo centro de saúde?

Todos os dias me ligam, perguntam se tenho sintomas, qual a minha temperatura. Até se surpreendem que a minha temperatura é relativamente baixa, mas continuo com o vírus aqui.

Entretanto já fez quatro testes…

E recebi quatro positivos. Agora faço de semana a semana, os dois primeiros tiveram duas semanas de intervalo. Recebo os resultados por e-mail. Normalmente é à sexta-feira. Até nisso… o último fiz no sábado, mas tinham perdido a minha informação. A minha médica de família voltou-me a ligar, a perguntar se já tinha os resultados. Disse-lhe que não, nem me tinham chamado. Foi ela que ligou para lá, e passado meia-hora ligaram-me do estádio a perguntar se tinha oportunidade de lá ir repetir o teste. Agarrei no meu carro, e fui. Neste momento, conduzo apenas o meu carro de trabalho, e a minha esposa o outro.

[A entrevista é interrompida quando o filho aparece à janela para contar ao pai a sua última descoberta num jogo que estava a jogar]

Percebe-se que o seu filho sente a sua falta…

Não estar com o pai, isso é o mais difícil para ele. Eu não conseguia imaginar que seria assim, só quando sentimos na pele é que se vê como é difícil. Infelizmente, vejo na televisão que muitas pessoas enquanto não sentirem na pele vão continuar a pensar que isto é uma brincadeira, que não mata, que não faz estragos. Ninguém sabe como vai ficar quando apanhar, ninguém sabe ao certo o tempo que vai demorar a sair-lhe do corpo. Têm na cabeça que era três dias, que era quinze dias. Eu não fui à cama e já cá estou há mais de um mês.

O que quer fazer quando finalmente lhe disserem que está livre do vírus, quando receber o primeiro resultado negativo?

Quero dois. Já conheci situações que o primeiro teste deu negativo, e a seguir voltou a dar positivo. Eu nem vou sair dali até ter dois negativos, não vou facilitar. Quando os tiver, quero almoçar à mesa com a minha família, quero abraçá-los, passar um dia com eles. Não vou logo trabalhar, vou aproveitar uns dias com eles. Aqui, estou e não estou. Quero dizer-lhes “vamos só nós dar uma volta”. Por vezes as pessoas não ligam a esse bem “tão supérfluo” que é eu poder sair da minha casa e “dar uma volta”. Levamos a vida numa rotina e nem nos apercebemos do bem que temos. Com as crianças, às vezes dizemos que não temos tempo, que estamos a fazer isto e aquilo. E agora… agora só queria estar com ele.

O que gostava de dizer às pessoas que vão ler a sua história?

Não facilitem. É preciso pensar que se calhar é melhor ter cuidado, não irmos para a praia todos juntos, adiarmos aquele jantar com amigos. Quanto mais depressa nos preservarmos, mais depressa isto passa.
Qualquer pessoa que tenha uma desconfiança, não tenha medo de fazer o teste. De certeza que há muita gente que está infetada garantidamente e não sabe. Eu, por exemplo, se não me tivessem avisado, andava por aí sem um teste positivo, andava a contaminar todas as pessoas.

Depois de encerrada a entrevista ao “Paciente 1”, cruzei-me com a sua esposa. Também ela sofria com a passagem dos dias, das semanas.

Um mês nisto. É complicado…

É difícil. O pior é o garoto que não pode ter contacto com ele. O resto, não é fácil, mas termos uma varanda, campo perto, dá para espairecer. O não podermos ter contacto com ele, sempre com medo de não tocarmos nisto, ou naquilo. Perguntamo-nos se ele tocou, se não tocou, se já foi desinfetado, se não foi. Esse é o maior dilema.
Com o meu filho, tenho de tentar controlar a parte física – de não mexer no pai – e a parte emocional, de não poder estar com o pai. É preciso engolir o nervosismo, tentar manter calma, evitar a ansiedade.

Quando finalmente puderem, qual é a primeira coisa que vai querer fazer?

Primeiro que tudo, queremos abraçá-lo, horas a fio, até o sufocar.

Pensa que as pessoas não compreendem esta situação?

As pessoas desvalorizam, não entendem talvez, até bater à nossa porta. Até conhecermos a quem aconteceu, ou então, sabermos que nos aconteceu a nós.
Com o fim do Estado de Emergência, os casos vão aumentar exponencialmente de novo, vão existir estragos de novo. Julgo que só tendo conhecidos, amigos, familiares, que tenham passado por isto, é que as pessoas vão aprender a respeitar mais a doença.

[ATUALIZAÇÃO: Depois de mais dois testes inclusivos, o “Paciente 1” recebeu a notícia que tinha derrotado o vírus no dia 21 de maio, terminando assim o seu calvário, mais de sete semanas depois de ter sido infetado]

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